sábado, outubro 02, 2004

Encruzilhadas


Esta foto é da autoria de Vitor Melo e foi
extraída do site 1000 Imagens



Eu sei que este texto é muito grande e também sei que é difícil ler no ecrã de um computador…

Não Francisco, não se trata de um desafio de aferição de tamanhos… o que isso possa significar… não sei se o acham extenso, eu acho-o lindo…




Mora-me um poeta
Que tento esconder,
A ver
Se poderei ser
Como toda a gente.

Abri os meus alçapões,
E no último desvão
O fechei a pão e água,
Com grilhões,
E uma corrente...
(... a ver se poderei ser
Como toda a gente).

Depois, saí para a rua,
Todo aprumado,
Escovado,
Dado a ferro,
Satisfeito:
Porque em verdade, julgava
Que a multidão que girava
Pensava
De mim
Assim:

- "Ali vai um homem
Tão decentemente
Que, naturalmente,
Nada deve ter
Que nos esconder..."

Delirantemente,
De mim para mim,
Eu pensava assim:

- " Ser como essa gente!
Ser bem menos gente!
Ser mais toda-a-gente
Que toda essa gente!"

Sim,
Raivosamente,
Eu pensava assim.

... Tanto mais raivosamente
Quanto, dos longes de mim,
Do fim
Do derradeiro alçapão,
O Poeta emparedado,
Esfaimado,
Encadeado,
Cantava a sua prisão:

- " Se aqui me fecharam,
Foi porque não posso
Debulhar o osso
Que me arremessaram...

Foi porque os desperto,
De noite e de dia,
Com a chama fria
Do meu gládio aberto...

Foi porque a pobreza
Que fiz meu tesoiro
Tem muito mais oiro
Que a sua riqueza...

Foi porque horas mortas,
Indo no caminho,
Lhes bati às portas,
Mas segui sozinho..."

Eu pensava:

- " Sim, realmente,
Se te fechei, foi a ver
Se poderei ser
Como toda a gente..."

E baixinho,
Recolhido sobre mim
Como um bichinho-de-conta,
Eu cantava-lhe também,
Recolhido sobre mim,
Cantigas de adormentar:
Cousas de pai, ou de mãe,
Que cantam para embalar...

Assim:

- "Durma um soninho comprido
No seu bercinho deitado,
Que o papão foi enxotado,
E eu não deixo o meu querido...

Durma um soninho alongado,
No seu bercinho estendido,
Que eu não tiro do sentido
Velar o meu adorado..."

E assim, com tudo isto ao peito,
- Um doido e seu alçapão -
Eu seguia satisfeito:
Porque em verdade, julgava
Que a multidão que girava
Pensava
De mim
Assim:

- "Ali vai um homem
Tão decentemente
Que, naturalmente,
Nada deve ter
Que nos esconder..."

Como era que, de repente,
Nos olhos de quem passava
(Um qualquer)
Imaginava
Ver debruçar-se a acusar-me
Um colosso...,
Um poeta inofensivo
Com ferros nos tornozelos,
Nos pulsos,
E no pescoço?

Ai, campainhas de alarme
Sob dedos de outro mundo...!

E nem sei como
Transtornado até ao fundo
Dos meus alçapões recônditos,
Melodramaticamente,
Eu avançava
De braços todos abertos
Para o qualquer que passava.

Então,
Diante de mim, agora,
Qualquer, e não sem razão,
(Qualquer grosseirão)
Parava, ria,
Dizia
Que eu era doido varrido...

E, corrido,
Eu desatava a correr.

A multidão
Detinha-se para ver
Este senhor bem vestido,
Com bom ar e belos modos,
A fugir, como um perdido,
Ante o pasmo dos mais todos!

Sarcasta,
Bem lá do fundo
Do alçapão derradeiro,
O meu Cativo cantava
O timbre da sua casta:

- "Sou como um grito de alarme
Sobre as tuas sonolências.
Preencho as tuas ausências
Com a presença de Deus...

O som dos teus escarcéus,
Redu-lo a silêncio e a espanto
O murmúrio do meu canto
Nos teus ouvidos impuros...

Quero-te! e não são teus muros
Que hão-de impedir que te enlace,
E que te queime a boca e a face
Com meu ósculo de fogo...

Que trapaças de que jogo
Inventarás por vencer-me,
Se te rojas como um verme
Sem as asas que te hei sido?

E é de tal modo perdido
O afã de me combater,
Que é teu supremo vencer
Não vencer - mas ser vencido..."

... Cantava.
Mas eu, aos poucos,
Subjugava
Meus nervos loucos:
Retomava,
Da minha lista de cor,
Qualquer pomposa atitude...
Por exemplo: a de senhor
Fundador,
Ou benfeitor,
De associações de virtude.

E seguia
Com decência e autoridade,
Enquanto com desespero,
Com crueldade,
Com ódio,
Com soluços de paixão,
Gritava lá para dentro
Do derradeiro alçapão:

- "Não!...,
Não penses
Que te pode ouvir alguém!
Ouço-te eu; e mais ninguém!
Mas eu não te soltarei,
Nem deixarei
Que parem à tua porta.
Hei-de ter-te emparedado,
Carregado
De correntes;
E, por uma noite morta,
Hei-de entrar, como um ladrão,
E hei-de te cravar os dentes
No lugar do coração;
E hei-de te arrancar a língua;
E hei-de te queimar os olhos;
E hás-de ficar cego e mudo;
E assim,
À míngua
De tudo,
Te hei-de deixar
A agonizar por três dias...
Então,
Hei-de compor elegias
À tua morte:
Elegias académicas,
Sonoras,
Metafóricas,
Retóricas,
Feitas com todo o recorte,
Com toda a morfologia,
Com toda a fonologia,
Com toda a sabedoria
De versos caindo iguais,
Como um relógio a dar ais
À hora do meio-dia!
Depois, hei-de conservar
O teu coração escuro
Triturado
Por meus dentes,
Hei-de o conservar, pintado,
Retocado,
Envernizado,
Num frasco de cristal puro...

Para o mostrar às visitas,
Aos amigos e aos parentes."

Assim falando
Para dentro
Do subterrâneo nefando,
Ia andando
Com aspecto satisfeito,
E direito,
Bem seguro,
Sobretudo, consciente
De estar mesmo a ser, agora,
A parte de fora
(A cal do muro)
De toda a gente...

Assim entro em várias casas,
Através de várias ruas,
Parando ante várias montras,
Cumprimentando
Para um lado, para outro...

Até ficar
Numa qualquer sala
Onde estão sentados
Homens e mulheres
Com um ar de embalsamados.

Criados
Vêm e vão
Com bandejas
Sobre a mão.

Paira, como nas igrejas,
Um fumo de hipocrisia...

Enquanto
A um canto,
Com funda neurastenia,
Um piano faz ão-ão,
Faz ão-ão a toda a gente,
Como um pobre cão doente.

Logo,
Então,
Qualquer menina Marguerite
Me implora que lhes recite
A última produção.

Recuso-me,
Ela insiste,
Vou para o meio da sala,
Tudo se cala,
Sinto-me triste,
Falta-me a fala,
Falta-me a respiração,
E a suar de angústia, rouco,
Debuxando no ar gestos de louco,
Arranco, num grande esforço,
Estas palavras ao Outro...

Palavras
De todo o meu coração:

- "No silêncio total, contemplo-te. Morreu
A já póstuma luz dos astros mortos, no céu cavo.
Chegou a nossa hora! A realidade és tu e eu.
Contemplo-te, senhor!, eu, teu indigno escravo...

Os teus olhos serenos e cruéis
Despojam-me de toda a ornamentação:
E eu tremo, nu, sobre os meus tristes, preciosos ouropéis,
Nu - e coberto de confusão.

Lembro as minhas mãos vis, meus olhos lassos,
E a minha carne murcha, e o meu suor,
E os meus pés deformados, e as feridas dos meus braços...
Tem dó de mim!, belo senhor.

Continuas a olhar-me. Imperturbável,
O teu olhar transpõe minha nudez.
E, por mais que a teus pés eu me recolha, miserável,
A alma dói-me!, porque tu ma vês.

Como és assim cruel, sendo tão belo?
Tira de mim o teu olhar, que me tortura,
Macio e frio como o fio dum cutelo...
Poupa-me à tua formosura!

Ah, que martírio
Ter-te sempre tranquilo, grande, belo,
Posto em frente de mim, que sou delírio,
Ranger de dentes pouco sãos, riso amarelo...!

Vai-te da minha vista, meu amado!
Chama por mim o chão de que sou digno.
Deixa-me resignar-me! Estou cansado.
Só por pudor de ti me não resigno...

Deixa-me ir ver, lá em baixo, os saltimbancos,
Gozar o vil ballet que sobe à cena.
Deixa-me ir ocupar o meu lugar nos bancos,
Exibir o meu número na arena!

Deixa-me ser vulgar!
Pois se não posso ser o que tu és,
Por que assim me agarrar, e rastejar,
Como um grilhão, aos teus pés?

Triste impotente, em vão, dentro de mim, grito estes gritos:
Olho-te..., e quedo nu e mudo,
Porque os teus olhos nítidos e fitos
Se me antecipam a tudo.

E eu sei que não te irás, nem eu irei.
Pesa sobre nós dois a mesma condição:
Que eu nasci servo dos teus pés de rei;
Tu, pobre rei!, servo da minha servidão."

Calo-me, aflito.
Em roda,
Com um ar comprometido,
Dizem que sim, que é bonito.
Tangendo as pontas dos dedos,
Dão-me palmas
Com um meneio entendido
Das frontes estupefactas...
E a menina Marguerite,
Levantando as omoplatas,
Baixa, lânguida,
As pálpebras timoratas
Sobre a fímbria do vestido.

Ah!, eu sei!
Sei que ninguém compreeendeu,
Nem podia compreender,
O meu combate de amor:
Este diálogo entre mim e eu.

E arrumado para um canto,
Como o piano,
Gozo onanisticamente
A glória de ser vencido,
Gritando ao meu tal Demente
Lá no seu fundo escondido:

- "Venceste, porque és maior!
Porque tinhas de vencer!
Porque eu sou fraco,
Pois que te não posso ter
Calado no teu buraco!
Eu, afinal,
Sou uma triste mistura
De ousadia e cobardia.
Sou tu e eu...,
Sou banal!
Nem sou pele nem carne viva,
Não sei subjugar nenhum,
Padeço de alternativa,
Nunca me atinjo só um!"

...Enquanto ao lado, de esguelha,
Falando para um sujeito
Debruçado, como um cuco,
Sobre o seu ombro perfeito,
A dona de um alto peito
E duma boca vermelha
Diz:

- "Não parece antipático!
Não..., só maluco.
Talvez um pouco lunático..."

E eu, sentindo-me ridículo
Com o meu ar sorumbático,
Vou fechar-me num cubículo
Onde não haja ninguém,
E aonde a voz do Arcanjo preso
Lá dos fundos, alta, vem:

- "Por que me renegas, se eu é que sou Um,
E em te desdobrando, tu não és nenhum?

Por que me recusas, se não há batalha
Que, sem mim ganhada, possas crer que valha?

Por que deles todos me escondes aqui,
Se eu é que os sou todos, e te sou a ti?

Por que só exibes, sobre o teu portal,
Vis máscaras minhas...?"

José Régio, As Encruzilhadas de Deus

2 comentários:

Anónimo disse...

Há mais dois Blogues de destaque que deveriam estar em evidencia...

http://tiagop.blogspot.com/
http://sonasol.blogspot.com/

Não esquecer.

F.Marinho

Carlos Galveias disse...

Para esses estou a preparar algo semi-novo... amanhã... tenham calma Tiago e Zuka, não foi esquecimento...