quarta-feira, dezembro 17, 2003

Só mais um....


Foto de Jean-Bernard AUGIER



O espelho
Poema de Luís Carlos Guimarães
(do livro A lua no espelho)

O espelho que me vê,
o que revela de mim?
Reflete o meu passado
vivo, ainda, no presente?
É minha esta máscara
que assim perto de mim
cara a cara interroga?
- O presente por onde passo,
quando passo, já é passado?
O espelho exibe o homem
triste, bêbado, poeta?
Um triste poeta bêbado?
Não reconheço o rosto
projetado na lâmina.
Quem agora se apresenta
me olhando impassível?
Talvez algum estranho
querendo passar por mim
ou eu mesmo disfarçado,
pois caminham lado a lado
a aparência e o disfarce,
e o que é semelhante,
se real, por aparente,
pode ser falso, disfarce.
Prisioneiro na moldura,
quem me fita absorto
no átimo desse momento?
Aquele que me observa
não será outro, cem, mil,
na sucessão dos minutos?
Com o minuto que vai
quem era não é mais.
Acaso existe vestígio
do menino que eu fui
na face de ruga e mágoa
ancorada na outra margem?
Do amor que foi um dia
sobrou apenas desamor?
Na solidão que não pedi
não me vejo na noite,
vestido de negro, neutro,
oculto no vidro opaco.
Se me visse na escuridão
encontraria o suicida?
Na superficie polida
o eu que não sou eu
tem o punhal da censura
na íris do olho azul.
(O desconhecido sou eu
na comprovação isenta:
estou no fundo do poço.)
A fisionomia crispada
mostra um ser acuado.
Acuado por quem? Pela vida
que dói na ferida antiga,
que sangra na chaga viva.
Quem o vê tão exposto
duvidará da sua nudez?
Ou pensará na farsa
de um retrato falado
que ele faz de si mesmo:
para enganar a quem?
Tem mulher, filhos, amigos?
Ou resta sozinho no mundo?
Na boca, no olhar, por que
se escancara um esgar?
Se acende uma fogueira?
Quem me busca na hora
quando saio do espelho?
Alguém que está perdido
e se confunde comigo?
Será o outro, meu duplo?
Seu riso sem sentido
não é um grito no escuro,
riso de pura zombaria
escarnecendo de quem?
De mim; do outro, do sósia
que não aceita seu papel?
Embora pareça comigo,
de quem será o vulto
que na estampa antiga
olha a lua no espelho
dentro de outro espelho?
O homem é seu labirinto,
enigma que não decifro.
O retângulo embaçado
não reflete mais ninguém.
A imagem que lá estava
desapareceu no espelho
e às perguntas que faço
não encontro resposta


..::carlos galveias::..

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